quarta-feira, 12 de maio de 2021

Crônica de Armando Nogueira sobre o 1000º ( 2 )

Mais uma grande crônica de Armando Nogueira, o homem que vestia as palavras do texto com smoking e traje de gala, sobre o 1000º gol de Pelé.



Em 21 de novembro de 1969, na sua coluna diária "Na Grande Área" no Jornal do Brasil, o Mestre Armando Nogueira escreveu:
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Não pode ser mais expressiva a lista de autores ilustres do futebol mundial que se manifestaram, ontem, sôbre o recorde assombroso de Pelé, marcando mil gols: Bobby Charlton, Bobby Moore, Stanley Matthews, Pedro Rocha, Uwe Seeler, Beckenbauer, Juan Schiaffino, Just Fontaine. E todos exaltam, não apenas o gênio criador de Pelé ( "um processo artístico em desdobramento" como disse Charlton ), Mas a valentia com que enfrentou todos os golpes em nome de um gol e, acima de tudo, a sua personalidade, que Schiaffino define como "simplesmente notável".

Gosto de ver tanta gente respeitável do futebol render homenagem à figura humana de Pelé, avalizando, afinal de contas, o que em 1965, escrevia eu, nesta coluna: "Pelé é a maior personalidade popular que conheci em tôda a minha vida de repórter".

E notem que essa turma não ouviu nem viu a cena mais grandiosamente humana da história de Pelé: êle, sufocado de microfones, de flashes, de câmaras, no meio do campo a pedir entre soluços que o povo brasileiro o escutasse:

- Pelo amor de Deus - clamava Pelé com a voz mais sofrida e mais corajosa que eu jamais ouvira em alguém de vida pública - pelo amor de Deus, agora, que sei que todos vocês estão me escutando, não deixem de ajudar as crianças pobres. Minha gente ( e chorando, chorando muito ) vamos pensar no Natal das crianças pobres, no Natal dos velhinhos, tem tanto velhinho sofrendo, por aí. Não vamos pensar só em festa, não. Pelo amor de Deus, vamos ajudar as crianças!

Se os Charlton, Seeler, Rocha, Gento, que são também vidas gloriosas do futebol mundial, se êles tivessem visto, como eu vi, aquêle momento de luminosa humildade de Pelé, tenho certeza de que teriam chorado um pouquinho, também.



Palavra, às vêzes fico pensando: será que a população incontável dos estádios mundiais tem idéia do serviço que, há mil gols, Pelé, vem prestando á consagração do futebol? Não apenas pelos gols que êle já fêz, mas pela arte e pela dignidade com que o faz; nem pelo equilíbrio olímpico com que acolhe as derrotas e os triunfos do campo de jôgo, mas sobretudo pela humildade com que desfruta as glórias de seu idolatrado suor.

A vida social dêsse rapaz é uma sucessão de gestos edificantes: sua fama é regida por normas morais que valem, em si, preciosas lições à juventude. Por exemplo: não há dinheiro no mundo que leve Pelé a fazer anúncio de cigarros e de bebidas alcoólicas. Já lhe fizeram propostas milionárias, tanto de marcas de fumo quanto de uísque e vermute - e êle, polidamente, recusou. E nem se pense que Pelé estaria materialmente à vontade para repelir o negócio porque tais propostas começaram a chover, justamente, no momento em que êle vivia, há alguns anos, terríveis dificuldades financeiras, dificuldades das quais, é bom que todos saibam, até hoje êle não se livrou de todo.

Pelé desfilou em carro aberto em cinco países da África, onde o querem como a um deus; já foi recebido por príncipes, reis, presidentes e pelo Papa, encontro, aliás, retratado pelo jornal inglês The Observer com uma legenda de primeira página, assim: "Pelé e um fan".
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Na legenda destacada em amarelo está escrito:
"Em Roma - o maior futebolista do mundo, Pelé, e um fan."

Pelé recebe centenas de cartas semanais do mundo inteiro. Algumas, para inveja daquela loja, só trazem o nome... e mais nada. E chegam direitinho a Santos. Eu mesmo já vi vários envelopes de cartas européias endereçadas a Pelé: um sêlo, o nome Pelé, sem falar sequer em Brasil.

Pelé já foi tentado por centenas de microfones, nacionais e intenacionais, querendo envolvê-lo, rendosamente, em disputas políticas; e êle jamais fraquejou. Nunca disse uma inconveniência a um jornalista, falando, sempre, com o maior equilíbrio, seja fora de campo, seja em plena tensão de uma partida.

E tudo isso acontece na vida dia e noite festejada dêsse rapaz sem que êle demonstre um pingo de máscara* ( *comportamento de vedete arrogante, como muitos hoje em dia que pensam que são os maiores do mundo ): onde quer que chegue, Paris ou Itacoatiara, Pelé é esfixiado pelos caçadores de autógrafos e pela imprensa. Eu confesso a vocês que, em tantos anos de encontros em estádio e concentrações, eu só entrevistei Pelé duas ou três v~ezes, apesar de ser êle uma pessoa solícita e, jornalisticamente, sempre interessante. Mas, é que eu fico com pena dêle, coitado, metido no massacre das admirações sem fim: despede-se um padre, aproxima-se um colégio inteiro, vai-se o colégio, já estão na fila três jornalistas italianos, dois tchecos e um canadense para entrevistá-lo; e êle resiste a tudo isso com uma paciência que só vi em candidato na véspera de eleição, assim mesmo, candidato azarão e em eleição de voto direto e secreto.

Aliás, por falar em candidato, tomara que o Govêrno leve adiante a idéia de criar o Ministério do Esporte: meu candidato a essa Pasta - meu e de todo mundo - chama-se Pelé.


Nota:👉 O jornal londrino The Observer dedicou esta página inteira de 20 de março de 1966, com uma reportagem sobre o futebol brasileiro, antes da Copa do Mundo naquele ano na Inglaterra.
Ainda não tive tempo de traduzir, mas quem souber inglês e quiser ler o texto, é só clicar no link abaixo.
👉Já aviso que em nenhuma parte do texto está escrito "gol oficial" ou gol-não oficial".

LINK THE OBSERVER, 20/03/1966👉AQUI

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