Nota do autor deste blog: Mais uma crônica genial do Mestre da crônica esportiva brasileira sobre o Rei Pelé, o maior de todos os tempos.E Nélson, conhecedor profundo deste país ingrato e sem memória que é o Brasil, quando escreveu esta crônica em 1959, no último parágrafo já profetizava, já antevia, já previa o que ia acontecer 50 anos depois...e ainda acontece...
"Pelé, colega de Michelangelo, Homero e Dante."
Revista Manchete Esportiva, Anuário de ouro, Edição especial, janeiro de 1959
Nélson Rodrigues, o melhor dramaturgo e cronista esportivo de todos os tempos no Brasil. |
Amigos, o meu personagem do ano tem de ser um jogador do escrete (nome pelo qual também a seleção brasileira de futebol é chamada) que levantou o Campeonato do Mundo. Mas é um problema catar, num time invicto, imbatível, um jogador que seja, exatamente, o símbolo pessoal e humano desse time e desse escrete. E logo um nome me ocorre, de uma maneira irresistível e fatal: — Pelé.
Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme de Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: — é um gênio indubitável. Digo e repito: — gênio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: — “Como vai, colega?”
De fato, assim como Miguel Ângelo é o Pelé da pintura, da escultura, Pelé é o Miguel Ângelo da bola. Um e outro podem achar graça de nós, medíocres, que não somos gênios de coisa nenhuma, nem de cuspe a distância. E que coisa confortável para nós, brasileiros, saber que temos um patrício assim genial e assim garoto!
PELÉ, COM 17 ANOS DE IDADE, |
Vejam: — dezessete anos!
Na idade em que o pobre ser humano anda quebrando vidraças, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho a canivete, Pelé torna-se campeão do mundo. Estava lá um rei, Gustavo, da Suécia. E viu-se, então, essa coisa que estaria a exigir um verso de Camões: — o rei desceu do seu trono e foi cumprimentar, foi apertar a mão do menino Pelé. Então, pergunto: — que experiência real teria o menino de cor? Havia de conhecer, no máximo, rei de baralho ou o Rei Patusco do gibi. Gustavo foi o primeiro rei autêntico que lhe mostrou os dentes num soberano sorriso.
Na idade em que o pobre ser humano anda quebrando vidraças, ou jogando bola de gude, ou raspando perna de passarinho a canivete, Pelé torna-se campeão do mundo. Estava lá um rei, Gustavo, da Suécia. E viu-se, então, essa coisa que estaria a exigir um verso de Camões: — o rei desceu do seu trono e foi cumprimentar, foi apertar a mão do menino Pelé. Então, pergunto: — que experiência real teria o menino de cor? Havia de conhecer, no máximo, rei de baralho ou o Rei Patusco do gibi. Gustavo foi o primeiro rei autêntico que lhe mostrou os dentes num soberano sorriso.
Eu sei que, na recepção ao escrete, houve quem rosnasse por aqui: — “Estão exagerando! Já é demais.” Está claro que não era demais, era de menos. Mas o brasileiro é assim mesmo. Em 1950, quase houve um suicídio nacional quando não fomos campeões do mundo. Éramos, todos nós, brasileiros, uma nação que quase toma formicida. Pois bem: — e em 58, ao conquistarmos o título, eis que houve, aqui, um hábito instantâneo à glória jamais imaginada. O nosso pileque cívico durou até o desembarque. Já no dia seguinte, porém, havia os descontentes, os fartos, os saturados.
Reportagem da revista PARIS-MATCH: PELÉ, 17 ANOS, REI DO BRASIL. |
Um conhecido meu veio protestar: — “Pelé não pode ser craque! Com dezessete anos, ninguém pode ser craque!” Na minha cólera, tive vontade de subir pelas paredes como uma lagartixa profissional. Mas o meu consolo foi que, ao mesmo tempo, saía no Paris-Match, que é uma revista mundial, uma vasta, erudita e compacta reportagem sobre Pelé.
Lá vinha escrito: — “Pelé, 17 anos, rei do Brasil.”
Enquanto, aqui, o brasileiro achava exagerado o próprio entusiasmo, uma revista parisiense punha o garoto brasileiro nas nuvens. Direi mais: — Paris-Match comportava-se diante de Pelé com a histeria de uma macaca de auditório.
Mas o que impressionou, na reportagem, foi a mentira que a entupia, de cabo a rabo. Nunca se mentiu tanto em seis páginas de revista! O repórter escrevia, por exemplo, que, na sua euforia ululante, o Brasil dera o nome de Pelé a ruas, praças e obeliscos. Então, eu concluí que, apesar de todo o seu passionalismo, a imprensa brasileira ainda é das mais sóbrias e das mais contidas. Aqui, nenhum jornal, nenhuma revista teria o descaro de inventar reis, de inventar fantásticas homenagens nacionais.
Não que Pelé e, de resto, todo o escrete não as merecessem. Por meu gosto, confesso: — eu teria enfiado no peito de Pelé a própria Legião de Honra. Mas é que o brasileiro não é disso. Sim, amigos: — o brasileiro reage ao bem que lhe fazem com uma gratidão amarga e quase ressentida. Que fez o escrete? Deu-nos a maior alegria de nossa vida. Tornou qualquer vira-lata em campeão do mundo. Mas a nossa gratidão logo secou como uma bica da Zona Sul. Tratamos de esquecer a jornada estupenda.
Mas eu vos digo: — “esquecer” não é bem o termo. Ou por outra: — o brasileiro pode “esquecer” da boca para fora. Mas na verdade um Pelé é inesquecível. Insisto: — apesar de toda a nossa ingratidão, Pelé é imortal. E por isso, porque ninguém pode enxotá-lo da nossa memória, eu o promovo a meu personagem do ano.
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