Nélson Rodrigues, o PAPA da crônica esportiva brasileira. |
Amigos, a cidade tem 5 milhões de habitantes, talvez mais. Pois esses 5 milhões deviam estar presentes, anteontem, no Estádio Mário Filho para ver o milésimo gol de Pelé *.
Dirão os idiotas da objetividade que o ex-Maracanã comporta, no máximo, 250 mil pessoas. Mas os que não pudessem entrar ficariam do lado de fora, atracados ao radinho de pilha e chupando laranjas. O que acho incrível e, sobretudo, indesculpável é que alguém, vivo ou morto, pudesse ficar indiferente à mais linda festa do futebol brasileiro em todos os tempos. Sim, os vivos deviam sair de suas casas e os mortos de suas tumbas.
Viva a mulher bonita, que não faltou. Só as feias não apareceram. Não sei se sabem que o sublime crioulo fascina a mulher bonita. As mais lindas garotas estavam lá. Mas falei em festa do futebol e, realmente, foi muito mais do que isso. Era uma festa nacional, a festa do povo, a festa do homem.
Na fila dos elevadores, o meu primeiro olhar descobriu a grã-fina das narinas de cadáver. Vocês entendem? Ela continua não sabendo quem é a bola. Mas o que a magnetizava era Pelé como homem, mito e herói. Bem sabemos que futebol é um esforço coletivo. São os times que ganham, perdem ou empatam.
Selo comemorativo dos 1000 gols |
Mas seus companheiros fizeram uma greve linda contra opênalti. Ninguém tocaria na bola. E, então, 100 mil pessoas, na gigantesca cadência coral, começaram a exigir: — “Pelé, Pelé, Pelé!”.Uma das que mais se esganiçavam era a grã-fina das narinas de cadáver. Uma louríssima suspirou, arrebatada: — “Com esse eu me casava!”.Mas vejam como o grande acontecimento tem a paisagem própria. Como já escrevi, Austerlitz não podia ser disputada num galinheiro. Foi isso que eu disse, quando o Santos jogou no campo do Esporte Clube Bahia. É óbvio que, depois do Estádio Mário Filho, todos os campos pequenos se tornaram galinheiros irremediáveis. O Pacaembu, por exemplo, é um galinheiro.
O campo do Botafogo, do Fluminense, do Parque Antártica, e centenas, milhares de outros campos obsoletos, são outros tantos galinheiros. É aqui e, repito, é no Estado Mário Filho que Pelé teve os seus grandes dias e as suas grandes noites. O próprio crioulo sabe que é muito mais amado aqui do que em São Paulo. Quando a bola foi colocada na marca do pênalti, criou-se um suspense colossal no estádio. O meu colega e amigo Villas-Bôas Corrêa, que não tem nada de passional, estava comovido da cabeça aos sapatos. A louríssima, por mim citada, sentia-se cada vez mais noiva de Pelé. O marido, ao lado, parecia concordar com o noivado e dar-lhe sua aprovação entusiástica. Eu não sei como dizer.
Carimbo dos Correios |
Mas estávamos todos crispados de uma emoção, um certo tipo de emoção, como não conhecíamos. Ao que íamos assistir já era História e já era Lenda. Imaginem alguém que fosse testemunha de Waterloo, ou da morte de César, ou sei lá. No ex-Maracanã, fez-se um silêncio ensurdecedor que toda acidade ouviu. No instante do chute, a coxa de Pelé tornou-se plástica, elástica, vital, como a anca de cavalo.
Mas havia alguém contracenando com ele no quinto ato da batalha. Era o formidável goleiro argentino Andrada. Em qualquer hipótese, ele ia se tornar uma figura histórica: — defendendo ou não. E quando Pelé estourou as redes, o Estádio Mário Filho voou pelos ares. Desde Pero Vaz de Caminha, nenhum brasileiro recebera apoteose tamanha.
De repente, como patrícios do guerreiro, cada um de nós sentiu-se um pouco co-autor do feito. Pelé voou, arremessou-se dentro do gol. Agarrou e beijou a bola. E chorava, o divino crioulo. Cem mil pessoas, de pé, aplaudiam como na ópera. Depois, assistimos à volta olímpica. Pelé com a camisa do Vasco, Naquele momento éramos todos brasileiros como nunca, apaixonadamente brasileiros.
* Santos 2 x 1 Vasco da Gama, 19/11/1969, no Estádio Mário Filho. [O Globo, 21/11/1969]
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