Dentro de um campo de futebol, Pelé fez coisas inacreditáveis sendo a maioria dessas coisas inigualáveis até os dias de hoje.E fora de campo, fez também coisas inacreditáveis, como parar guerras ou unir inimigos históricos, e ganhou títulos e homenagens das mais variadas instituições mundiais que poucos seres humanos podem se gabar de terem conseguido.
Esta homenagem da ONU aconteceu logo após o *jogo de despedida de Pelé, entre o New York Cosmos e o Santos Futebol Clube em 1 de outubro de 1977 em Nova York.
(*Deste jogo de despedida falarei em breve, já que este jogo faz parte das 5 Despedidas de Pelé,
tema que vou abordar aqui no blog nos próximos tempos)
Reportagem extraída da Revista Placar de 7 de outubro de 1977,
onde está o essencial do texto do enviado especial, o jornalista Lemyr Martins.
Sem o menor desrespeito, a palavra correta seria assanhamento:
foi assim que reagiram os embaixadores, os convidados, os funcionários no dia em que a ONU homenageou Pelé dando-lhe o título de cidadão do mundo.Foi um momento de glória e de caos:todos queriam abraçar o Rei, posar a seu lado, apertar a sua mão.Até mesmo viver um pouco da sua emoção.
Meia hora antes da solenidade em que Edson Arantes do Nascimento iria receber, na sede da Organização das Nações Unidas, um título destinado às grandes personalidades - o de cidadão do mundo -, havia uma pessoa particularmente preocupada, em meio à multidão que aguardava a chegada de Pelé.
Era Cecil Redman, um homem negro alto e forte, vice-diretor do serviço de segurança da ONU.
- Claro que estou preocupado.Esse é um tipo de segurança a que eu e meus colegas não estamos habituados.Afinal, é a visita de um rei - um Rei do Mundo.
Era tão visível a preocupação de Redman - depois transformada em emoção - que, no auge dos acontecimentos, impediu que o carro do ex-chanceler alemão Willy Brandt estacionasse por mais de cinco minutos no local destinado aos embaixadores.
Houve um diálogo rápido e curioso entre o oficial de segurança e o ex-chefe de Estado:
-Quem chega?
-Pelé, Excelência.
-Quem?
-Pelé.
-Ah...,então me permite esperá-lo aqui?
-Tenha a bondade.
Chegou Pelé - e Willy Brandt acabou sendo a primeira personalidade a estender-lhe a mão.
Adeus, protocolo
Depois disso, muita confusão aconteceria nos normalmente calmos, pesadamente sisudos corredores e salões da ONU.A mais estranha - e até inédita - foi a interrupção sofrida pelo representante inglês.Ele suspendeu seu discurso para possibilitar a ida de vários funcionários até ao quarto andar, onde seria prestada a homenagem ao jogador brasileiro Pelé.Isso deu lugar a um gracejo do delegado mexicano: por causa de Pelé - brincou - estava destinada a ficar sem resposta uma intervenção de Andrew Young, o representante dos Estados Unidos da América.
Entre esbarrões, apelos, gritos, sussurros, Pelé foi sendo levado ao local da cerimônia.E ninguém conseguiria ouvir o discurso de apresentação de monsieur Henri Labouisse, presidente da Organização Internacional da Infância. E alguém saberá o que disse a secretária-geral da UNICEF ao entregar a Pelé o título de cidadão do mundo?O diploma com uma bela inscrição em letras góticas, dizia apenas: "Edson Arantes do Nascimento, cidadão do mundo".
Houve dificuldade para tudo. Foi difícil seguir o roteiro programado - e tanto, que metade do protocolo deixou ser ser cumprida.
Sequer houve a apresentação, meticulosamente prevista a cada um dos embaixadores.
Acreditem: nos esbarrões, misturavam-se diplomatas, convidados, gente da imprensa, funcionários da ONU.
Pelé recebeu mais de uma centena de apertos de mão - e soube muito pouco do que acontecia em torno, muito pouco sobre os que, em torno dele, se agitavam freneticamente.
O representante da Guiné-Bissau, por exemplo, sabe - como confessou - que Pelé não pôde ouvir o convite para que visitasse o seu país.Consolava-se: - O importante é que eu sei quem ele é.
Nem o representante brasileiro na ONU, João Batista Pinheiros, nem o chanceler Azeredo Silveira - que fizeram o discurso de abertura da assembléia-geral - escaparam aos empurrões. A custo, conseguiram ficar ao lado de Pelé durante a homenagem.
De improviso e em inglês, o Rei do Futebol fez o seu agradecimento.Mensagem, como sempre, voltada para as crianças. Reafirmou seu propósito de viajar pelo mundo para conseguir mais fundos para o comitê da UNICEF - que arrecadou neste ano (de 1977), só nos EUA, mais de 100 milhões de dólares.
Pelé ria tranquilo de toda a estrepolia.Dava a mão a todos.Ouvia, enfim, nomes de pessoas, de países.Para a maioria dos representantes, repetia: "Eu conheço o seu país.É lindo.Estive lá com o Santos em 19...." - sem nunca precisar o ano certo.Às vezes em inglês, outras em espanhol, um pouco de francês, respondia às frases ditas - às vezes gritadas - a seu ouvido.
Durante a cerimônia, por duas vezes os fotógrafos foram retirados, para diminuir o tumulto.Mas umas tantas vezes eram secretários, assessores de representantes que iam buscar esses fotógrafos, recém despejados, para documentar a presença dos embaixadores ao lado de Pelé.
Bolas e coisas típicas de cada país eram trazidas para os autógrafos.
Uma das pessoas mais contentes era o ministro Sérgio Correia de Costa, da representação brasileira na ONU. Tão contente que produziu uma altissonante retórica, ao dizer que "os sinos brasileiros soavam alto" dentro da ONU.Experimentado diplomata, o ministro não se lembrava de outra homenagem, dentro da ONU, com tamanha repercussão, com semelhante espontaneidade.
E. como sempre acontece por onde passa o cidadão Edson Arantes do Nascimento, teria de haver o lado cômico.Dentro da ONU, a casa onde todos, onde todas as nações - pelo menos as 159 filiadas - têm a mais ampla liberdade, para ir, para vir, para protestar, para gritar, Pelé acabou preso.Preso pela própria segurança, por Cecil Rodman e seus funcionários da segurança.
Quando os homens tentavam - porque a rigor não conseguiam - proteger Pelé, foram obrigados a encostar o Rei a um canto do hall do elevador, entrada para a sala de uma das comissões do Conselho de Segurança.Por mais de dez minutos, tiveram a exclusividade dos autógrafos.
Uma hora e quarenta minutos depois de ter entrado, Pelé retirou-se, acompanhado por diplomatas brasileiros.Estava encerrada mais uma cerimônia em sua homenagem.
Mais que mineiro e brasileiro, ganhara a cidadania universal.Emocionado como sempre.Como confessaria, dentro do elevador, à Placar:
- Olha, eu chorei de emoção quando fui campeão do mundo pela primeira vez na Suécia em 1958.Sofri muito quando tive que sair no segundo jogo contra a Tchecoslováquia em 1962.Senti muito a nossa derrota em 1966, como ri e me emocionei em 70 no México, quando ganhamos o TRI.Mas esse foi o maior título que já ganhei.Não disputei com ninguém, não precisei vencer nenhum adversário.
Depois, não seria apenas um banquete. Não eram homens vestidos a rigor nem senhoras elegantes que estavam entre os 300 convidados na festa que houve no luxuoso salão principal do Hotel Plaza de Nova York.Foram sim, personalidades do esporte mundial que se distribuiram pelas 84 mesas decoradas com belas flores.
Uma longa noite de discursos, 32 pessoas falando sobre um assunto comum: Pelé e o futebol.Não que fosse um tema pré-estabelecido.Mas porque - como dizia o apresentador da festa e locutor da ABC - estavam perto da maior figura do esporte da bola.
Só houve elogios.E um mundo de cartões de prata, discos, troféus, mensagens especiais - como a que foi lida pelo presidente do New York Cosmos, e na qual o presidente dos Estados Unidos da América (na época), Jimmy Carter, se congratulava com Pelé pelo recebimento do título de cidadão do mundo.Mas o bonito mesmo ficou por conta do pessoal do futebol.
Os discursos de Mauro Ramos, Hideraldo Bellini e Carlos Alberto Torres - os capitães das 3 copas vencidas pelo Brasil (até aquela altura) - tinham o inevitável cheiro de saudade da grandes conquistas.Conquistas que, insinuaram todos, eram devidas em maior parte a Pelé.
Depois, Bobby Moore, capitão e campeão pela Inglaterra em 1996.
Para dizer, com emoção bem visível que Pelé sempre foi um vencedor.E que a sua admiração maior vinha disto: Pelé, com grandeza, cultuava a vitória, sem menosprezar os vencidos.
Franz Beckenbauer, afirmou que não estava simplesmente fazendo um elogio - mas uma confissão."Mesmo tendo levantado uma Taça - que não foi a Jules Rimet, porque essa glória Pelé não me permitiu - de campeão do mundo, mais a de tricampeão da Europa pelo Bayern de Munique e a Taça da Europa de Seleções, nas se pode comparar à felicidade de ter Pelé a meu lado, de jogar com ele no mesmo clube.E essa seria a maior felicidade para qualquer jogador de futebol".
*Nota do autor:Para quem ainda não sabe quem são Franz Beckenbauer e Bobby Moore, eu explico:
são "apenas" considerados os dois melhores beques centrais da história do futebol:-)
Há mais texto após as palavras de Beckenbauer, mas o essencial da reportagem está aí acima.
Para quem quiser ler o resto do texto, pode ampliar as imagens das páginas originais da Revista Placar aqui abaixo:
Já notaram o que está escrito no CARA OU COROA em fundo azul e letras brancas na foto acima?:-)
"Depois do último jogo de Pelé nos EUA, não haverá mais cara-ou-coroa,
o tradicional sorteio antes dos jogos de futebol.
Todo árbitro usará - além do apito, caneta, papel, cartões - uma moeda especialmente cunhada para o sorteio da escolha do campo ou até para o desempate.
Será a moeda Pelé. De um lado, a face do jogador, do outro lado, a camisa 10.
A determinação vale até para jogos de colégios e universidades.E foi oficializada pela Liga de Futebol Norte-Americana."
A moeda Pelé. |
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